1994 - PAULISTA / CONSOLAÇÃO - PASSAGEM LITERÁRIA

“Vou descer as escadas e, se a pressa não for infernal, vou ceder à pressão que essas linhas, que essas cores, que essa estranha familiaridade (Conheço essa estampa. Mas que estampa? Estampa? Onde estamos?) imprimem na periferia da minha retina. Quando sair do outro lado, serei outra. Exagero? Acho que não. Estará definitivamente comprometida a minha confortável indiferença cotidiana ao cruzamento das mil ruas que é esta esquina. Com um certo constrangimento, reconhecerei a – agora – paisagem, como se despertada de um longo sono. Que belezas insuspeitas jaziam encobertas de fuligem! Acabo de sofrer uma cirurgia no olhar.

Uma retina astuta está por trás deste pequeno milagre. A retina de Carla Caffé. Despudorado órgão que vem sistematicamente despindo a cidade de São Paulo de sua feiúra banal, desse magma cinzento que forma as paredes do corredor inevitável entre "a" e "b". Ou formava. Desde que começou a publicar seus desenhos na Folha, Carla operou o tal milagre em centenas de leitores incaustos, que se deixaram levar pelo seu olhar, desavisados e ainda não recuperaram inteiramente a miopia confortável de metropolitanos.

Carla está exibindo seus desenhos. Neste caso, ampliações copiográficas de seus bicos-de-pena, coloridos esparsamente com aquarela ou mesmo lápis de cor. Eles retratam a paisagem vizinha à galeria, que é na verdade um túnel para pedestres, ligando as duas calçadas da Consolação. As paredes do túnel são o suporte direto do trabalho, como se assim o exigissem, matéria mesma que são dos desenhos. Eles contam da cidade nos termos dela: são lambe-lambes, outdoors, a "sujeira" típica que sequer registramos impregnada nos muros, aqui incomodamente visível.

Tudo é incômodo neste trabalho. Eu tenho a sensação que outros retratos de uma esquina da cidade, a lápis, caneta, óleo ou crayon, não causariam tal distúrbio. Pois não é apenas o olhar cirúrgico de Carla, extraindo pequenas joias da massa disforme e cinzenta, que opera tal desconforto ao nos expor a nossa própria cegueira. É também, e talvez principalmente, a maneira como esse olhar se materializa no papel.

Os desenhos não assentam. Falam de concreto, de ferro, de pedra e asfalto, no entanto pairam sobre a folha, sem alicerces. Alçam voo. Fragmentos da cidade se deslocam no papel como estampa ou entidade, tal qual os santinhos e decalques que enfeitam e completam os trabalhos. Prédios, botecos, fachadas viram tótens aéreos. A perspectiva inexiste, ou evapora, ou desanda, desmanchando em horizontes interrompidos, ondas, linhas fluidas que sugerem a rapidez do olhar urbano possível, um piscar. São desenhos belíssimos, acima de tudo.

E, além do mais, congregam uma outra arqueologia. Não bastasse a obsessão cirúrgica com a paisagem urbana, Carla ainda recupera – fisicamente – uma iconografia do banal, daquela matéria impressa que assola as ruas da cidade, e que normalmente apenas nos congestiona a indiferença. São figurinhas e cartões e santinhos e embalagens e guardanapos que, ora colados ou até grampeados aos seus desenhos, saltam olhos como que recém-inventados.

Há um frescor nesse olhar que contamina, que incita a alma a chacoalhar o torpor de citadino, a  imagens de sempre, como se fosse a primeira vez." -  Daniela Thomas

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