2012 - A(E)REA PAULISTA

Curadoria e texto: Agnaldo Farias

"O que, afinal, recolhemos das cidades? Quais as sobras das experiências que temos delas, sobretudo das metrópoles, como São Paulo, esse conglomerado impossivelmente confuso, prédios gigantescos acotovelados uns aos outros formando muros imensos e truncados, responsáveis pelos canyons, abismos, gretas e fendas por onde, coleados aos seus pés, como um enxame de insetos rasteiros, deslizamos, roçando-nos, embaraçando-nos, agarrando-nos em fluxos desencontrados, cada qual indiferente ou desesperado, não importa, pois ninguém dá mesmo por isso, apenas um emaranhado de gente e máquina submerso em imagens, ruídos e na atmosfera densa, espessa de pó, variando do calor abafado às correntes geladas que no inverno soca-nos as caras? Como sobreviver e o que reter dessa realidade, à triste chantagem dos miseráveis e malabaristas que loteiam os cruzamentos, aos engarrafamentos, aos ônibus e vagões rebentando de gente, senão desviando-se dela, preocupando-se com o compromisso de daqui a pouco ou simplesmente não pensando em nada, de pé ou sentado, deixando-se lentamente afundar sob o peso de um sono real ou inventado?

Mas a cidade, a verdadeira “obra de arte total”, é também um espetáculo arrebatador, uma colisão de ritmos ordenados com outros que se dão ao acaso, e que se vai dando à medida em que nos deslocamos por ela, um filme do qual somos co-autores. Por isso é impossível não notá-la, melhor ainda quando gente, como Carla Caffé, dá-se ao trabalho de nos chamar a atenção para o que, dentro desse tudo, interessa.

Em “Aerea Paulista”, Carla vai de uma ponta à outra da avenida Paulista, a trilha aberta ao longo da grande linha vertebral da cidade, de onde, à esquerda e à direita, descaem as encostas até se acomodarem em planaltos, compondo os vales por onde correm os dois principais rios que a atravessam. Da Bernadino de Campos à Praça dos Arcos, ela percorre anotando, registrando, examinando, esboçando, bosquejando, recortando, decupando, ou seja, empregando grande parte dos verbos que compreendem DESENHAR. Vai representando excertos de construções notáveis por suas peculiaridades, arquiteturas e situações que, aqueles que vivem em São Paulo ou simplesmente vivenciaram essa avenida em algum tempo, percebem-lhes amadas, embora até esse momento a maioria não soubesse disso. A prova do afeto é que eles a reconhecerão de imediato e, como acontece, se reconhecerão nesse reconhecimento. 

Mas, atenção, esses desenhos não interessam apenas aos paulistanos. Fosse isto não importariam a ninguém. Interessam porque, realizados a partir da avenida Paulista, uma sucessão de decalques obtidos por fricções do olhar e dos dedos empunhando lápis e pincééis, são muitas outras coisas. A começar pela constatação de que nossa memória expande-se e se materializa nos espaços que habitamos ou por onde frequentemente passamos. E como poderia ser diferente uma vez que dificilmente nos vemos ou, por outra, vemo-nos pelo lado de dentro? Vai daí que nos percebemos em relação ao que nos rodeia. Somos, pois, constituídos pela idiossincrasia de cheiros e sons provenientes das ruas, do aroma insuportavelmente doce do vendedor de churros ao cheiro dos outros, quando estamos obrigados a promiscuidade das lotações; somos as buzinas, as sirenes, os alarmes, e também as conversas incessantes, em grupo ou solitárias, o prenúncio da chegada do próximo trem do metrô: o som surdo, que primeiramente se escuta pelas vísceras. Somos o extrovertido dos anúncios luminosos, cartazes, o áalaácre digladiamento das revistas expostas nas bancas de jornal, desejando que as olhemos de perto, em contraponto com a regularidade imponente das fachadas e dos desenhos das calçadas. Estamos na retícula das caixilharias, nos revestimentos especulares, como os que levam vidro, nos nervos expostos das estruturas que suportam as coberturas, no cume dos prédios, pretendendo inventar formas de diálogo com o céu ao mesmo tempo que nos persuade a olhar para cima...”

Prêmio FUNARTE e PROAC

Anterior
Anterior

4ª REVOLUÇÃO - AV. PAULISTA

Próximo
Próximo

RIOS E RUAS - PRAÇA VICTOR CIVITA